Conceito, PAIXÃO, identidade

12.09.2017 - Mary Silva / Jornal Exclusivo

Alta no poder aquisitivo da classe média, boom do consumo, crise, desaceleração, reaquecimento, incerteza, enxurrada de informações. De uns anos para cá, uma montanha-russa econômico-cultural vem sacudindo o mercado, redefinindo conceitos e arrastando para bem longe as velhas formas de pensar o design e o varejo de moda. No Brasil, o fenômeno fast-fashion chegou com potencial para devastar a realidade de pequenos, médios e até grandes empresários, com largas escalas de produção – em tempo recorde – e preços, por vezes, escandalosamente baixos. Nas últimas décadas, o usufruto de marcas antes restritas a uma minoria financeiramente privilegiada ficou acessível ao grande público.

Este movimento, superficialmente democratizador, no entanto, colocou sob os holofotes a terrível verdade por trás de muitas destas máquinas de vendas que, como define o estilista Ronaldo Fraga, deixam em seu legado um retrato sombrio. “É fundamental observar as condições de quem trabalha nesta indústria, saber como o produto é feito, sem se iludir com preço baixo. Porque uma peça muito barata, certamente, pinga sangue”, reflete. Com acesso à informação, o consumidor já demonstra uma mudança no comportamento. O que é muito fácil de comprar passou a ficar um pouco mais difícil de digerir e a exigência de maior transparência por parte da indústria vem tomando proporções cada vez maiores.

Correndo na direção contrária, Ronaldo Fraga é um dos poucos remanescentes do início da década de 1990 que mantêm espaço consolidado na elite da moda nacional. Empreendedor e criativo, diz imprimir a própria alma em sua arte. “Quem se diferencia é quem traz conceito, expressão, cultura. Precisamos preservar a indústria, mas criando pontos de harmonia com o autoral”, defende.

Repertório CONSISTENTE

Avesso ao comércio de “bastantões”, Ronaldo Fraga disponibiliza sua assinatura em pequenas cápsulas que, salvo algumas parcerias com outras marcas, são comercializadas somente em sua loja-conceito, o Grande Hotel Ronaldo Fraga, em Belo Horizonte/MG. “Hoje tudo é produzido em grande escala e se perdeu parte da magia. As pessoas não precisam de mais roupas, mais calçados. Já tem demais por aí. Elas querem novas experiências, realizar sonhos. Quem quer usar a minha moda, tem de ir atrás dela, no Grande Hotel. Lá, recebemos pessoas e pensares, música, gastronomia e até roupas”, explica, justificando sua produção enxuta.

O desconforto do estilista com o varejo “fast-tudo” vai ao encontro da busca do consumidor contemporâneo, que, segundo ele, já começou a pensar melhor antes de investir e assimila a urgência de uma postura consciente na hora das compras. “O novo luxo é o comércio de rua, que proporciona encontros, em casarões com cheiro de memórias. Fazer roupa é fácil – contar uma boa história através de sua criação é onde reside a mágica. A diferença está no repertório. Me diga a fonte da qual tu bebes, que te direi a qualidade do teu trabalho”, provoca.

O design de ASSINATURA que não volta MAIS

Bebendo da fonte das tecnologias e abraçadas nas maravilhas do big data, as marcas com assinaturas autênticas são o ponto fora da curva. Mais do que construções inusitadas e estéticas inovadoras, o sucesso encontra abrigo na equação moda + conforto + personalidade = gerar desejo e suprir a necessidade do consumidor por um preço que ele possa e esteja disposto a pagar.

Esta nova luz sobre o design autoral, acesa pela recessão, traz à memória um contexto inverso e remete à época de ouro da indústria calçadista nacional. Em meados dos anos 1960, o fazer diferente era o que gerava desejo, garantindo ao sapato brasileiro um lugar de honra na moda internacional.

O cenário era Novo Hamburgo/RS e o nome era Ruy Chaves. “O mais impressionante era a capacidade que ele tinha de criar e experimentar, com materiais diferentes. Só se fazia produtos em couro preto e marrom e ele vinha com fitas mimosas coloridas costuradas embaixo de escamas transparentes de peixes do Porto de Santos”, detalha Ida Thön, professora universitária aposentada, ex-coordenadora do Museu Nacional do Calçado – MNC (Novo Hamburgo/RS) e co-autora do livro Memória do Setor Coureiro-Calçadista: Pioneiros e Empreendedores do Vale do Rio dos Sinos. Contemporânea de Chaves e admiradora de sua obra, acompanhou de perto a ascensão deste e de outros artistas da região. Nasceram em berço hamburguense também as assinaturas célebres de gênios do empreendedorismo no segmento, como José Maria Carrasco Menna e Carlos Gilberto Simon. “Tudo começou aqui. O primeiro salto transparente, adornos feitos com palha, com sementes, o primeiro pantógrafo. Era tudo novo e todas as mulheres sonhavam com aquelas criações”, relata.

Foto: Mary Silva/GES-Especial O artesanal e o alto luxo concebidos por Ruy Chaves
O artesanal e o alto luxo concebidos por Ruy Chaves

As CINDERELAS de Ruy Chaves

Na avaliação de Ida Thön, Ruy Chaves foi o mais importante e também mais criativo designer de calçados de sua geração. “Ele viajava para muitos lugares e trazia elementos únicos para suas criações, como rendas, tecidos de vestuário, trançados de coqueiros e o que mais a imaginação permitisse. Um grande destaque, sem dúvida, foram os sapatos perfumados, com uma fragrância exclusiva, a Ruy Chaves nº 5, que também era distribuída em um frasco especial”, conta ela. O profissional foi um dos poucos premiados duas vezes como o melhor estilista do mundo – troféu concedido pela Academia Italiana de Design e considerado o Oscar do Calçado.

Chaves era um dos mais requisitados designers entre celebridades e primeiras-damas brasileiras. “Quem calçava um sapato dele se sentia uma verdadeira Cinderela, tamanho encanto e beleza”, opina a escritora. Sua marca Grande Gala é lembrada até hoje pela qualidade e refinamento.

Foto: Mary Silva/GES-Especial Modelos infantis de autoria de José Maria Carrasco Mena
Modelos infantis de autoria de José Maria Carrasco Mena
CARRASCO, um visionário

“O Carrasco chegava a fazer 999 peças por coleção, isso nos anos 1950. Ele dizia ‘mil não!’”, diverte-se Ida Thön, ao relembrar as histórias sobre o espanhol José Maria Carrasco Menna, que se mudou para o Brasil em 1952, estabelecendo residência em Novo Hamburgo, onde viveu até o fim de sua vida, em 2008, aos 84 anos. Entre seus principais feitos, foi pioneiro na fabricação de plásticos injetáveis no mundo, em 1958. Jornalista, fotógrafo e instrutor de cursos técnicos na área do calçado, foi cronista do Jornal Exclusivo nos anos 1960, onde escrevia sobre novidades do setor em diversas áreas. “Ele era um jovem à frente de seu tempo e se preocupava muito com o desenvolvimento da indústria”, comenta Ida.

Um novo MUNDO nas lentes de Alceu Feijó

Jornalista e fotógrafo do Grupo Sinos, Alceu Feijó registrou os principais momentos da história do calçado gaúcho. Integrante do grupo que percorreu o País para divulgar a primeira Festa Nacional do Calçado (Fenac), em Novo Hamburgo, ele lembra de quando o design gaúcho se tornou referência. “O produto era um grande sucesso no Brasil e no exterior. Muitas empresas foram abertas, criavam-se oportunidades. Houve um tempo em que se chegou a ter mais de 40 indústrias na cidade”, relata.

E a fórmula de SUCESSO para os dias atuais?

Para a professora Ida Thön, o sucesso do conceito signature, hoje, vai muito além de uma mente criativa. “É fundamental ser inventivo e empreendedor, mas sobretudo dominar a tecnologia, apostar na qualidade. Ronaldo Fraga é um exemplo de originalidade a seguir. Ele canta sua terra, conhece a cultura e tira leite de pedra. Ruy fazia isso na intuição”, resume.

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